26/02/04

ÓDIO E AMOR, por MANGAS e CHARLES VIDOR

O DESPREZO, por MANGAS

“Desprezo quase tudo em ti. Ainda me falta descobrir o que não desprezo. Desprezo essa tua pretensa cultura intelectualizada que aprendes nos artigos cabotinos sem perceber uma única linha, desses jornais de fim-de-semana, com suplementos para tudo. Ou nesses livros estéreis que lês, escritos por autores estrangeiros, cujos universos criados se identificam com o teu, tanto quanto um elefante tem asas ou o teu sexo é feliz e sobre os quais se escrevem toneladas de papel morto. Não só nunca leste Torga como não conheces Aquilino, vê lá tu...! Desprezo esse teu narcisismo pedante, esses teus gestos de solidariedade natalícia adaptados às circunstâncias e que executas por uma necessidade inabalável de estima pessoal. Pouco me importam esses teus delírios de auto-compaixão que poucas vezes te obrigaram a cometer o sacrilégio de expores os teus medos ou revelares o que te vai na alma. Os teus diálogos são mais chatos que a Roda da Sorte. Se escolheres branco, eu escolho preto. Se beberes esses licores cremosos de aroma meloso, sabor macilento e coloridos de icterícia, deixa-me o vinho, tinto de preferência, carrascão ou a martelo: embebedo-me à tua frente enquanto o diabo esfrega um olho e faço o pino, para mostrar a essa tua imbecil aparência de camaleão amestrado que o olhar tem várias aparências. É tudo uma questão de ângulo. Deixa-me dizer-te tudo isto, para que não haja equívocos entre nós. Para ficar bem claro que não pertenço á tua tribo, nem compartilho os teus ideais de revolução caramelizada.
Se queres saber, prefiro olhar perdido durante horas, do cimo de uma mesquita em Marrakech, para as dunas esquecidas no deserto, do que a tua companhia.
Apesar de não te conhecer. De nunca te ter falado sequer.”
Queens, N.Y. Dezembro/93


GILDA, de CHARLES VIDOR

(...)
- Acho que é uma boa estratégia rodeares-te de mulheres feias e de homens bonitos.
- É verdade. Já o conhecias.
- Quem?
- O Johny.
- O Johny Farrel?
- Sim.
- Não.
- Não me mintas, Gilda. Nunca me mintas.
- Estou a dizer a verdade. Não o conhecia. Acho que nunca o conheci, Ballin.
- Estou a perceber. És uma criança, Gilda, uma criança linda e ambiciosa. Diverte-me dar-te coisas bonitas, porque as aceitas com enorme voracidade.
- Mas não devo cometer erros.
- Não, não deves.
- Se estás preocupado com o Johny Farrel, não estejas. Eu odeio-o.
- Ele também te odeia, como é bem evidente. Mas o ódio pode ser um sentimento muito excitante. Ainda não reparaste nisso?
- Dizes isso como se...
- É um sentimento reconfortante. Não sentiste isso esta noite?
- Não.
- Pois eu senti. Reconfortou-me. O ódio foi a única coisa que sempre me reconfortou.
(...)

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