15/05/04

Fulham 0 -1 Arsenal (9 Maio 2004), por Repórter Alves

10 minutos para o embate. Os últimos adeptos arrumam-se ordeiramente em assentos modestos, mas devidamente numerados. Enquanto isso a maioria entretem-se há algum tempo a entoar cânticos festivos ou a brincar com grandes bolas insufladas que acabam invariavelmente dentro do relvado: entre este e a arquibancada apenas existe um muro de cerca de 80 cm de altura a separá-los. Os stewards, sempre prestativos, vão devolvendo pacientemente as bolas para a multidão, reforçando a boa disposição geral. É o último jogo da época em casa, mas não é por isso que o estádio está a abarrotar. Foi assim toda a época, apesar do clube jogar em casa emprestada, enquanto aguarda pela conclusão das obras dum novo e novo e moderníssimo complexo. A expectativa essa sim é particularmente elevada: recebe-se o Arsenal, virtual campeão ainda invicto depois de 37 jogos, e está em jogo nada mais nada menos que um lugar nas competições europeias da próxima temporada. Ambas equipas, e a de arbitragem, entram lado a lado num campo transformado num autêntico caldeirão musical. A ovação é unânime e estrondosa. Todos os jogadores acenam, indiferenciadamente, para uma e outra claque, num gesto ostensivo de reconhecimento pelo caloroso acolhimento. O árbitro dialoga animadamente com os capitães. Mais parece um reencontro de velhos amigos. Escolhe-se campo e bola e logo de seguida começa a partida. São neste momento exactamente 16 horas e 5 minutos. Olho para o meu bilhete à procura do time of the match, lá está, em bold: 4,05h pm. Os primeiros lances podem definir-se como uma disputa frenética pela posse de bola. Anfitriões e forasteiros apresentam esquemas tácticos similares, 4-1-4-1, com defesa em linha, um trinco, dois médios centrais pressionantes e alas muito colados às linhas. O modelo de jogo acusa porém diferentes abordagens o jogo; enquanto na equipa da casa os jogadores têm posições mais rígidas e o futebol é mais rectílineo e previsível - insistindo em passes por alto para um desamparado ponta de lança - os supercampeões, por seu turno, parecem confiar mais na técnica individual, com gestos simples, recepção-passe, toque de primeira, triangulações fáceis em situações de dois para um, e apostar na movimentação atacante - um sistema elástico que começa com nove jogadores atrás da linha da bola e se desenvolve através duma imediata reposição ofensiva, circulação de bola a toda a largura do terreno e desdobramento dos alas e laterais ao longo das faixas. Mais ou menos 15 minutos de jogo. O guardião da equipa da casa, internacional de grande prestígio e que estará no EURO 2004 a defender as redes de uma das selecções favoritas, recebe junto à marca do penalti, um atraso, seguro, dum colega da defensiva. O avançado da equipe adversária aproxima-se, cumprindo a obrigação de estorvar. Teria sido mais fácil, definitivamente mais fácil, um chute para a galera. Mas não, o keeper da casa tentou um bonito, ousando a simulação. O avançado, talvez adivinhando-lhe os pensamentos, foi mais lesto e interceptou o drible. Estava consumado o desastre. Feito o corte, limpo, ao feliz atacante bastou empurrar a bola para dentro de uma baliza deserta. Surreal. Ao desastrado keeper, coube depois ir buscar a bola ao fundo das malhas, não suficientemente fundo para esconder a suprema humilhação que deveria estar a sofrer. Um golo patético, um falha ridícula, como lhe chamaria, no day after, um afamado cronista local. Um golo que acabaria por ser o único do jogo ditando assim a enésima vitória da equipe invencível e a derrota da equipa da casa, que viu desmoronar-se, num deslize imperdoável, o sonho europeu de um temporada.
Minuto 40 da primeira parte, já com o Arsenal na frente do marcador Lundberg leva um toque e cai junto ao muro onde está encostada a claque do Fulham; não não foi cuspido, não, não levou nenhum soco ou pontapé e ao que pude observar à distância também não apanhou com nenhum rádio ou telemóvel ou cabeça de leitão na cabeça. Um corpulento adepto da equipe da casa estendeu-lhe o vigoroso braço e ajudou-o a erguer-se para marcar a falta e prosseguir o jogo. O árbitro apita para o final do jogo. A claque local está de consciência tranquila. Tal como os jogadores no campo, haviam dado o seu melhor, pois nem o golo surreal havia impedido que tivessem apoiado os seus ídolos um só instante os 90 minutos. Os jogadores trocam camisolas e cumprimentam-se, entre todos, longamente. A partir daqui torna-se quase impossível distinguir quem são companheiros de equipa e quem são oponentes. Alguns começam a dirigir-se para as bancadas, onde todos os adeptos, de pé, prolongam cerimoniosamente o último aplauso. Já não se ouvem cânticos, nem ovações, apenas palmas. Em uníssono. De forma menos ordenada, os jogadores aproximam-se então ainda mais do público para retribuir com aplausos os aplausos recebidos. O guarda-redes da triste figura é dos mais aplaudidos: havia feito um grande época na qual salvara a equipa em diversas ocasiões, e por isso já estava perdoado antes de ter pecado. Multiplicam-se os sorrisos, cúmmplices, entre jogadores e público. Só o muro, que na verdade tanto faz lá estar como não (uma linha no chão teria o mesmo efeito prático), separa assistência e futebolistas, pois no mais já estão equiparados: ambos foram igualmente protagonistas de mais uma tarde inesquecível. Instala-se, em poucos segundos, uma indesmentível nostalgia, própria de final de época, e que só desaparecerá lá para o final do Verão, quando por fim regressar a Premier League.
Foi assim que vi, ao vivo, Fulham X Arsenal, em Loftus Road, no Qeens Park Stadium, propriedade do Queens Park Rangers, localizado no coração dum bairro residencial londrino. Não esquecerei nunca. Porque foi lindo. Só por isso. E também porque descobri que enquanto houver pessoas que amem verdadeiramente o futebol o futebol é possível. Não referi, porque não ouvi, porque não houve, um assobiadela. Apupos, apenas um ou dois, dirigidos ao árbitro, que foi respeitado por todos os jogadores como se de um colega mais velho de equipa se tratasse. Sem alternativa possível vi o jogo junto aos adeptos do Arsenal, concentrados atrás de uma das balizas. Havia velhos, crianças, ladies, old ladies, gente pintada,fantasiada, travestida e até um orangotango. Tanto a entrada - feita cautelosamente num ponto oposto do estádio - como a saída - feita em conjunto - decorreu sem nenhum tipo de problema. E nem sequer fomos insultados, apesar da euforia dos Gunners, depois de estar mais perto de igualar um recorde histórico de terminar o campeonato sem derrotas. Só aconteceu antes um única vez, em 1889...
Como dizia o saudoso Vítor Santos, assistir ao futebol em Inglaterra é como beber vinho na adega e directamente do pipo.

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