17/06/04

Deco, por Trigue da Malásia

Há quem pense que o racismo se manifesta quando se define uma discriminação com base na cor da pele. É errado. O preconceito com base na cor é recente, remonta ao tempo em que foi necessário justificar a escravatura dos negros. Antes, o factor discriminador era a fé. O modelo era a hegemonização com base na fé. Cristianizar. Os cristianizadores julgavam-se portadores da verdade. Este é o equívoco sobre o qual assentam todas as atitudes discriminatórias. Cristianizou-se à força, pois a força, sendo verdadeira, era libertadora do forçado. Os judeus foram as principais vítimas. Eram deicidas. Muitos fugiram, outros converteram-se, com sinceridade ou não. Ainda assim, estabeleceu-se uma distinção infame entre cristãos-novos e cristãos velhos. A Inquisição definia as regras para considerar o sangue limpo de judaísmo. A ideia de Igualdade ainda não triunfara. Com o advento da contemporaneidade e o triunfo do conceito de cidadania, iniciou-se um longo caminho para abolir as diferenciações com base na religião, no sexo ou na raça. Não é mais admissível distinguirem-se os cidadãos com critérios que não dependam do mérito e das qualidades individuais. Não há privilégios de nascimento, nem se aceita qualquer predeterminação legitimada em verdades reveladas. No entanto, levantava-se um problema: o que une então os portugueses? O que faz de nós um povo? Esta é a grande questão do nacionalismo romântico em toda a Europa. Estuda-se a alma nacional, os costumes, crenças, tradições, com o objectivo de definir o que é ser português. O curioso é que esta nova sociedade, dessacralizada e racionalizada, não aboliu o critério da Verdade para fundamentar o sentido da pertença do indivíduo na comunidade. Pelo contrário, no lugar da verdade religiosa colocou uma verdade científica. Para falar apenas no caso português, houve quem valorizasse um eventual substrato étnico. Fosse céltico, latino, germânico ou até moçárabe, na teoria estapafúrdia de Teófilo Braga que mereceu o escárnio imediato de Oliveira Martins e que foi logo enjeitada. Outros, buscaram na geografia o elemento definidor da nacionalidade. Haveria uma pretensa individualidade geográfica que exerceria uma influência irrecusável sobre as gentes que ocupam o território, moldando-lhes o carácter e definindo os contornos da identidade nacional. Teve os seus arautos, esta tese. Hoje é por todos considerada risível! O que define então a cidadania é a vontade de pertencer a uma determinada comunidade que partilha um território, uma memória, uma cultura, um conjunto de valores. A comunhão total é impossível e indesejável, mas admitamos que há-de haver um conjunto mínimo de valores essenciais, sem o que não se admite a existência de uma identidade supraindividual. Esses valores partilhados não são específicos, nem exclusivos, nem inacessíveis a quem os quiser partilhar. Esse estatuto não está subordinado a factores naturais ou sobrenaturais, indiscutíveis. Agora, é a lei civil, já não o ditame religioso ou a antropologia física, que regulamenta o modo de aceder à cidadania e à nacionalidade. A lei é aprovada por órgãos soberanos com legitimidade democrática. Uma vez adquirida a cidadania, ela não pode ser diminuída sob nenhuma forma. O novo conceito já não é homogeneizador. Admite a pluralidade, o convívio da diferença, a multiculturalidade, o ecumenismo, a diversidade. Esta é a primeira e mais importante característica da pós-modernidade. Encerra um risco, aquilo a que estudiosos anglo-saxónicos, como John Solomos ou Les Black, já chamam «o novo racismo cultural». Nesta nova concepção, que supera a diferenciação com base na fé e na pigmentação da pele, processa-a agora a partir de um certo particularismo cultural inconcretizável e indefinível. Dispensa-se qualquer necessidade de argumentação, pois se afirma a cultura como adquirida naturalmente através de um longo processo cujos contornos são impossíveis de circunscrever, mas que uma vez concluído, faz com que seja impossível escapar ou aceder a esse particularismo cultural que se define pseudobiologicamente. Ou seja, uma vez português, português para sempre. Não sendo português quando atingida a maturação, jamais se poderá aceder ao verdaeiro sentido da portucalidade a não ser formalmente. Diz-se então coisas como »não sentem o hino como nós», «não vibram como nós», não sofrem, etc. Isso permite aos arautos desta nova mutação da ideologia racista, prosseguir numa estratégia discriminatória que, segundo os autores já citados, lhes confere a base teórica para circunscrever o conceito de nação a partir desse particularismo cultural, definindo os excluídos como sendo aqueles que não podem comungar deste estatuto.
Ora, neste contexto, as afirmações de Figo acerca da naturalização de Deco assumem uma particular gravidade que merece ser severamente contestada. Afirmou o jogador do Real Madrid, reiterada e reflectidamente, que discordava que jogadores naturalizados pudessem jogar na selecção. Ao arrepio do que se faz noutras selecções europeias, e mesmo nas selecções portuguesas de todas as modalidades incluindo o futebol. Sem nunca o citar, Figo tinha um alvo: Deco. Esta opinião do Figo supõe um preconceito racista na medida em que coloca como condição para representar a selecção algo que não depende do mérito, nem da vontade de um cidadão português. E o homem que anda a vender bandeiras pelos hipermercados, em poses patrioteiras deveria ao menos justificar a sua disparatada opinião. Mas não o faz. Porque essa opinião não é defensável! Pede que respeitem a sua tola opinião. Justamente o que, em nome dos direitos de cidadania não se pode fazer. Dado o estatuto, o impacte e o alcance das afirmações de Figo, ele mereceria repreensão pronta e ríspida. Poucos o fizeram e foram mais os que concordaram, mostrando uma impunidade consentida pelos idólatras de um país que não consegue separar a admiração devida ao desportista da repreensão que merecem as suas afirmações. O Deco adquiriu a nacionalidade portuguesa, nos termos da lei e da constituição. Ponto final! Os direitos de cidadania, uma vez adquiridos, não podem ser ofendidos ou sequer levemente beliscados por opiniões subjectivas que ferem, nem que seja muito levemente, o pleno usufruto da cidadania! O Deco é cidadão de pleno direito e ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de colocar em causa os seus direitos de cidadania,seja sob que forma for, incluindo a opinião pessoal. Quando é o Figo a proferir essa opinião, dada a sua popularidade e o cargo que desempenha como membro oficial de uma selecção nacional, deveria estar consciente das implicações da sua opinião e não se refugiar nesta desculpa: é a minha opinião, tenho direito a a vê-la respeitada. Não, não tem, porque é uma opinião idiota, que coloca em causa o estatuto de um seu companheiro que foi obtido nos termos da lei e da Constituição e que está exactamente ao mesmo nível de direitos e deveres que ele próprio. O que a opinião disparatada do Figo supõe é que ele se considera mais cidadão do que o Deco. E não é. Como se houvesse uma categoria para cidadãos-novos e outra para cidadãos-velhos!

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