22/12/06

O Poder é uma Batata, por O Poder do Acho Eu de Que o Poder Está na Verba

Então é assim.
Desconfio, à cabeça, de gente com convicções “profundas” ou “arreigadas”. Acho, nesse sentido, extremamente sábia a visão taoista da vida, que centra a sua filosofia na dualidade dos contrários universais. Como explanou Lao Tsé, tudo na existência possui uma faceta negativa e outra positiva, da electricidade à natureza humana, tudo é dual, tudo é uma coisa e o seu contrário. As convicções não são excepção a essa regra e se a elas se devem inúmeras conquistas e realizações positivas, também contêm em si a semente do ódio e da destruição. Um terrorista islâmico ou nacionalista é um homem profundamente convicto da sua crença, por exemplo. Da mesma massa mas em sentido oposto é feita gente como Ghandi ou Madre Teresa de Calcutá.
Um homem convicto, no entanto, e por norma, é um homem dogmático e prisioneiro das sua verdade. O mesmo se aplica, naturalmente, a um homem agnóstico ou que faça da dúvida o seu método, se não houver o essencial equilíbrio e moderação entre as paixões opostas. Dai a importância de uma conduta pessoal ética, humanista e universal, igualitária e transversal, supra-confessional e supra-ideológica: tolerante. Esta circunstância dualista do homem e das coisas, que tanto pano tem dado para as mangas de autores e filósofos desde o dealbar da História, aplica-se também à história do cristianismo e à das religiões em geral.
É desse modo que o cristianismo e o catolicismo romano em particular, consegue oferecer do melhor e do pior, a paz e a guerra, o amor e o ódio, a intolerância e a incondicional aceitação do “outro” diferente. Por essas e outras nuances, a história do cristianismo é uma realidade extremamente complexa e dualista, um caminho de luz mas também de sombra e sofrimento. É também por isso que o pequeno ensaio do Borat pode ser lido como um manancial de contradições. Precisamente porque a história da sua fé é também tecida de profundas contradições. É normal e é humano.
Ao sustentar que a sua é uma igreja pioneira e revolucionária na separação de poder temporal e espiritual (o que nem é mentira na sua génese doutrinária, nas tais palavras revolucionárias de Cristo) Borat acaba por encher a sua prosa de exemplos precisamente do contrário, de casos em que foi e é flagrante a promiscuidade entre os dois poderes, de Constantino ao César-papismo, da coroação de Carlos Magno em Roma à Inquisição, da capacidade papal para destituir ou entronizar príncipes e reis às teorias de São Bernardo, do cisma Protestante ao banco Ambrosiano, o percurso da Igreja Católica está cheia de exemplos marcantes da interferência religiosa no governo dos homens e das coisas da terra – basta lembrar que se calcula que na Idade Média a Igreja do Vaticano controlava/possuía cerca de um terço das terras cultiváveis da Europa, como verdadeiros senhores feudais. Aliás, desde 756 que o Papa era o administrador político do Património de São Pedro, o Estado da Igreja, constituído por um território italiano doado pelo rei franco, Pepino. Se isso não é poder temporal, o que será?
Por todas estas e outras manifestações ou emanações do poder terreno do Vaticano, não admira portanto e por exemplo que a Revolução Francesa tenha vitimado sobretudo a nobreza e o clero. Não foi certamente porque o Clero andava a dar milho às pombas e aos pobres, mas era provavelmente porque as vozes de gente boa como o celebrado Francisco de Assis chegou mais profundamente aos peixes e a uns poucos cristãos do que à estrutura ortodoxa da Igreja. Assim como também não foi certamente por capricho que Lutero se revoltou contra a ortodoxia católica papista dominante e as suas indulgências e vida mundana, pregando em 1517 as suas 95 Teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg.
O facto é que nada disto é linear e muito menos simples e que vai uma grande distância entre o universo cristão, latu sensu e o sub-universo católico.
Nesse contexto tendo a achar que razão tinha Antero de Quental na célebre conferência do casino dedicada às “Causas da decadência dos povos peninsulares”, onde traça uma clara demarcação entre cristianismo e catolicismo. Para o grande Antero, depois do Concílio de Trento, o Cristianismo, "que é sobretudo um sentimento", afastou-se radicalmente do culto Católico, "que é principalmente uma instituição". Segundo o autor, se o primeiro vive da fé, o outro medra do dogmatismo e da disciplina cega. A mesma que levou a iniquidades como a Inquisição ou a evangelização forçada de milhares e milhares de seres humanos, não à força do sacralizado “Verbo”, mas tão só à força da maior força, que em nome da Cruz arrasou culturas e credos milenares um pouco por todo o planeta.
Antero de Quental, recorde-se, foi também dos mais ferrenhos denunciadores do poder temporal da Igreja Católica no nosso país. Esse facto, de resto, levou a que as Conferências fossem proibidas por portaria real e por pressão da Igreja. Pressão essa que se manifesta ainda hoje em inúmeros capítulos da vida social e cultural e que de espiritual tem muito pouco.
É neste sentido que acho que uma coisa são as boas intenções e as boas palavras, outra bem diferente são os factos e as suas consequências efectivas. Por isso é que eu acho (e o eu, já agora, sou os eus celebrados na capa da Time aqui reproduzida nuns postes abaixo e que anuncia ao mundo a revolução “achista”) que uma coisa é a alegada mensagem de Jesus Cristo (é preciso não esquecer que os Evangelhos que compõem o Novo Testamento só começaram a ser escritos quase um século após a sua crucificação e muita coisa foi deturpada pelas conveniências do contexto ou da vontade do escriba) e outra bem diferente é a organização religiosa e doutrinal que a partir daí se foi desenvolvendo e enriquecendo, moldando-se às conveniências do momento histórico. E essa (lá está a qualidade dualista das coisas) acaba por ser também a vantagem do catolicismo sobre religiões como o islamismo, muito menos permeável à mudança e à força das circunstâncias.
Não obstante e dada a sua natureza tendencialmente “imutável”, a Igreja Católica associa-se regra geral às tendências políticas mais conservadoras e reaccionárias (salvo raras excepções, como a citada pelo Borat “teologia da libertação” na América Latina, proscrita de resto pelas chefias eclesiásticas). Se no Portugal da guerra civil dos anos trinta do século XIX a Igreja se posicionou, realmente, do lado das derrotadas forças absolutistas (apoio concreto e que traduz só por si uma manifestação de interferência no «poder temporal»), não admira também que tenha sido um dos esteios fundamentais da ditadura salazarista (“Deus, Pátria, Família”), ainda que para o final da sua vida e do seu consulado o presidente do Conselho tenha perdido totalmente a fé no ideário católico, como bem lembra Fernando Dacosta no seu excelente “As máscaras de Salazar”.
Tudo isto são também factos, e tudo isto e a História mostram à exaustão como é falaciosa a tese da Igreja Católica enquanto expoente da “separação de poderes”. Teoricamente até será assim, e era bom que assim fosse e que a Igreja se reduzisse ao seu ministério espiritual, mas a prática vivida é uma realidade bem diferente e, por outro lado, há imensas formas, mais ou menos dissimuladas, mais ou menos directas, de condicionar ou interferir nos assuntos temporais e concretos da nossa vida social, económica, cultural ou política.
Diz o Borat que a Igreja é “simplesmente” uma “comunidade de crentes”. «Não uma hierarquia, nem uma instituição, não uma ortodoxia nem um Estado, não uma tradição nem um poder. Simplesmente uma comunidade de crentes». Não concordo. Por um lado, todas as igrejas, seitas, religiões ou cultos são obviamente comunidades de crentes. Por outro, a Igreja de Borat também é uma hierarquia, também é uma instituição, também é uma ortodoxia, também é um Estado, também é obviamente uma tradição e também é muito naturalmente um poder. E esse poder, basta olhar para o tema desapaixonadamente, tanto é espiritual como concreto.
Quanto a caberem lá todos, como já afirmei, conheço poucos cultos religiosos onde não caibam todos os que assim queiram e creiam. Se isso é ser “universal”, repito, todas as religiões o são. E isto não sou só eu a achar, é o poder da evidência. Para terminar, apenas lembro que além de não haverem verdades absolutas e definitivas, principalmente nas matérias do espírito e do sentido mais profundo da vida, a Igreja Católica, como todas as outras, é uma Igreja de homens para homens, e tanto é humana nas suas virtudes como nos seus defeitos e um destes, como sublinhava por exemplo Nietzsche, é a sede de poder, de supremacia, seja qual for a sua natureza, a que ninguém é imune, muito menos os homens que compõem a Igreja Católica Apostólica Romana, que é grande, mas é apenas uma entre muitas. Em si mesma nem boa nem má; em si mesma, por ser humana, má e boa em simultâneo. É tudo relativo, enfim, por muito que o senhor Ratzinger não goste.

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