11/02/07

A Neve e a Conspiração, por Mangas

Existem gémeos separados à nascença, como existem filmes que nos trazem à memória outros filmes pelas semelhanças invocadas. Comigo aconteceu estar a ver Snow Falling on Cedars (1999), e a recordar-me de Bad Day at Black Rock (1955). Ambos contam histórias de como agir honradamente. Parece simples, mas não é. Porque as sequelas de Pearl Harbor alcançam da mesma forma o deserto do sudoeste americano ou a comunidade de uma pequena ilha a norte de Seatlle - a guerra mais terrível é aquela que não cala o som dos bombardeamentos nos corações dos homens. Se John Macreedy (Spencer Tracy) o soubesse, teria sempre ido para o deserto cumprir a tarefa que o empurrou até lá; Hector David (Lee Marvin nos melhores anos de cão raivoso), Coley Trimble (Erneste Borgnine) e a seita do costume sempre o souberam, mas precisavam de ser ensinados a silenciar as armas, por dentro, no território das feridas silenciadas. A punição fez parte do processo.

Um homem com preconceitos em relação a outro homem é como uma criança ameaçada pelo ódio – percorre acelerado, em passos cegos e de punhos crispados, a distância mais curta da intolerância. Há quem lhe chame vingança também, mas John Macreedy, o velho amputado de um braço, já tinha a sua conta da ira dos homens, e uma missão a cumprir. Ishmael Chambers (Ethan Hawk) teve um pai, mesmo depois do pai ter morrido. A figura paterna, pela dimensão de honra e justiça, assumiu no Jornal a voz da liberdade - há quem lhes chame dignidade e rectidão também, ou no caso, heranças de peso para o jovem Ishmael, o Rejeitado, o amputado de um braço no desembarque da Normandia, que já tinha à sua conta que contar sobre amores desprezado e os Ahabs deste mundo.

São estes dois homens, estes dois outsiders, que movidos pela determinação do dever e da paixão, irão resgatar a memória de dois japoneses condenados pela cor da pele e à revelia do direito. Um velho implacável, fiel cão de guarda de alguns valores irrevogáveis, e um jovem derrotado, envelhecido pela memória de um amor esmagado pelo preconceito racial em tempo de guerra que nunca conseguiu esquecer. Veja-se com atenção a brilhante sequência em flash-back que culmina no agonizante e mais profundo sentimento de rejeição de Ishmael «fucking jap bitch!».

Um dia. Um mau dia em Black Rock. Vinte e quatro horas que mudarão para sempre a vida naquela cidade. Linear. Como o amanhecer e o anoitecer num palco a céu aberto. O medo, esse assassino de conluio com a culpa, jamais adormeceu. Em A Neve Caindo Sobre os Cedros, parece quase sempre que o passado é manhã e que o presente é noite envolta em neblina. A trama complexa das estações. Os jovens, os adultos e os velhos. Os flash-backs constantes são como bússolas em territórios emocionais: indicam-nos a direcção, contudo nunca nos revelam o destino final. Cada personagem é um contributo para a percepção do todo. Simbólica e grandiosa a presença de Max von Sydow na interpretação do advogado de defesa Nels Gudmundsson. O seu discurso final faz o resumo condensado de todo o filme, de toda a vida no que ela se entende, para todos os homens presentes, ausentes ou à beira da última viagem, como ele próprio. E os cedros outrora verdes, vergados à neve glaciar. E os áridos contornos escarpados do deserto sob um sol abrasador e conspirativo. E o refúgio no bosque, o encontro com Hatsue (Youki Kudoh) no mais seguro e reconfortante isolamento, o musgo e as sombras das grandes árvores contempladas, fugas in Laudate Dominum, de Mozart. E um homem só, numa cidade só e hostil, amarga e perdida no esquecimento do inferno ao meio-dia, protegendo um terrível segredo, como se assim, pelo silêncio das vozes, apagassem das consciências a culpa.

O tributo final então não será para Komoko redimido; nem para Miyamoto cuja maior conquista foi ter sido devolvido em liberdade aos braços da mulher. Pelo contrário. A última rendição no filme de John Sturges surge sob a forma de um pedido quando na plataforma do comboio, o médico diz a Macreedy que Black Rock era moribunda como cidade, mas que espera que ela sobreviva agora, ao qual o outro responde, de forma seca, que algumas cidades não regressam mais… Então, o médico pergunta-lhe se lhes pode deixar a Purple Heart que era destinada a Kokomo. “It might help the town come back”, acrescenta. Macreedy entrega-lhe a medalha e parte no comboio. Em Neve Caindo Sobre os Cedros, Scott Hicks propõe uma solução mais óbvia, mas ao mesmo tempo, portadora em si de uma enorme herança clássica, pois o grande cinema, mesmo quando se repete, nunca é igual: quando o juiz manda libertar Miyamoto em face de novas e relevantes provas, a assembleia nipónica, primeiro o pai, depois todos os outros, viram costas ao juiz, encaram o andar cimeiro do tribunal e em uníssono fazem uma vénia silenciosa a Ishmael em sinal de agradecimento – da mesma forma como em Na Sombra e no Silêncio (1962) de Robert Mulligan e inspirado no romance homónimo de Harper Lee -, apenas com a inversão de sentidos quando o advogado Atticus Finch (enorme Gregory Peck!), abandona o tribunal na mais profunda desolação após ter perdido o caso em favor do preconceito racial do Deep South. E é naquele imenso vazio de cadeiras abandonadas que a assembleia negra, no andar cimeiro do tribunal, fica e permanece de pé à sua passagem em sinal de respeito e reconhecimento. Nunca um breve silêncio exprimiu tão imenso grito de revolta nos tribunais dos homens.

A Conspiração do Silêncio e A Neve Caindo Sobre os Cedros tocam-se pelos opostos. O clássico duro e a ode poética. O linchamento da integridade e a condenação arbitrária. A paranóia e o racismo. As fronteiras do ódio e pacificação da memória. Tal como, o sol e a neve, percorrem as mesmas geografias das consciências e da alma.

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