14/05/07

Morangos – Ciclo da Fruta, por Mal Gore

Augusto, gordo atrás do balcão, fixa o nada de olhar perdido para as bandas difusas do outro lado da montra. O merceeiro silencioso reflecte nas contingências da vida e espera vagamente pelo próximo cliente. A mercearia de Augusto, homem de 54 anos e alguns meses, abarrotava de mercadoria diversa à maneira das velhas mercearias de bairro de outros tempos, como se houvera parado no tempo. À excepção de alguns melhoramentos cromados aqui e ali e das novas gamas de mercadoria mais colorida que noutros tempos, tudo permanecia como dantes na mercearia Mimosa, apenas mais gasta, como Augusto, que envelhecera atrás do balcão de madeira coberto com plástico de padrão aos quadrados. Estamos em finais de Abril e Augusto dá consigo a pensar que é quase época do morango. Um frémito de prazer lúbrico percorre-lhe o corpo gelatinoso e Augusto antecipa orgias vermelhas.
Junho. Augusto, gordo atrás do balcão, fixa o nada de olhar perdido para as bandas difusas do outro lado da montra.
- Boa tarde senhor Augusto!
O fornecedor de morangos irrompe espalhafatoso pela mercearia e Augusto desperta do torpor com um arrepio na espinha. Começou.
Como sempre, Augusto compra cinco grandes caixas de morangos. O fornecedor já nem pergunta para que quer ele tanto morango. Já se habituara a este estranho pedido. Normalmente as mercearias compram uma, quanto muito duas caixas, de cada vez e mais bastas vezes, devido à rápida degradação do fruto exposto. Mas na Mimosa, não obstante a fraca freguesia, era sempre assim no princípio da época morangueira e o fornecedor já desistira de perguntar ou aconselhar.
Augusto colocou uma das caixas à porta com preçário toscamente manuscrito e guardou as restantes quatro no pequeno armazém das traseiras. Regressou pesadamente para trás do balcão pensativo, agora com um sorriso enigmático no rosto que lhe dava um certo ar de imbecil contente. Ao fim da tarde baixou as grades das montras, carregou a Kangoo com as caixas de morangos garridos e abalou de sorriso idiota para a casa térrea e isolada nos arrabaldes semi-rurais a norte de Coimbra, onde morava na companhia de dois cães, quatro coelhos, dois pombos e quatro gatos.
A cave de Augusto fazia lembrar uma enorme casa de banho sem o respectivo mobiliário, completamente branca, forrada de cima a baixo com azulejos brancos, asséptica e sem qualquer decoração. A um lado da divisão estava uma banheira branca das antigas, vitoriana, com pés de ferro e cerca de metro meio de comprimento, sob a qual pendia uma roldana. No tecto alto, apenas uma lâmpada nua pendurada por um fio cru.
Depois de ter arrastado as caixas de morango para a cave, Augusto encheu a banheira com os frutos e saiu.
Interlúdio contextual: Todos os anos era assim, há mais de trinta anos. Os primeiros morangos do ano motivavam este estranho comportamento do solitário merceeiro que fora, em criança, sodomizado repetidamente por um agricultor dono de um campo de morangos onde Augusto trabalhava nas férias escolares. De modo que este ritual anual era fruto de um trauma de infância de natureza anal.
Rapace, Augusto percorreu nessa noite as ruas sombrias de Coimbra. Acabou por estacionar a carrinha na avenida ribeirinha paralela ao estádio Universitário, na margem esquerda do Mondego. Não esperou muito. Com sinais de luzes atraiu um dos jovens que por ali se prostituíam.
- O que é que você quer? Perguntou o rapaz já dentro da carrinha.
- O que é que havia de ser? Respondeu Augusto, adiantando 20 euros para a mão do prostituto. Vamos para um sítio mais discreto. Em minha casa dou-te mais 20 euros.
O rapaz concordou com um encolher de ombros e seguiram os dois para a velha vivenda isolada. Ao entrarem na casa, Augusto agarrou num cacete encostado atrás da porta e desferiu uma pancada sem cerimónias na cabeça do rapaz, que caiu redondo no chão sem um ái, inconsciente. Augusto arrastou o corpo para a cave, despiu-o e amarrou-lhe os pés e as mãos. Enquanto o jovem despertava, gemendo confuso, Augusto içou-o pela roldana, fixando um gancho no nó que lhe atava os tornozelos. Horrorizado, o rapaz debatia-se de cabeça para baixo gritando inutilmente, cerca de metro meio acima da banheira de morangos, enquanto o merceeiro se despia impávido de sorriso imbecil nos lábios.
Alheio ao terror histérico do rapaz, Augusto entrou na banheira. Sensivelmente à altura do seu peito, a cabeça do rapaz agitava-se freneticamente. O merceeiro agarrou-lhe então firmemente pelos cabelos, imobilizou-o e, com um golpe certeiro e silencioso, cortou-lhe o pescoço atingindo a carótida. A artéria rasgada começou a jorrar como uma mangueira descontrolada, espirrando vermelho pelo chão e pelas paredes imaculadas da cave e por todo o corpo obscenamente nu de Augusto, que entretanto se deitara naquela imersão de morangos e sangue. À medida em que se esvaia, o rapaz pendurado pelos pés foi-se imobilizando e o sangue começou a cair em duche de borbotos, num fio de liquido quente e rubro constante, em cima da banheira onde Augusto se espojava e se masturbava no intenso vermelho da papa de morangos e sangue.
O festim durou perto de meia-hora. O jovem não demorou muito a morrer e Augusto ejaculou três vezes em poucos minutos. Depois deixou-se ficar deitado na banheira, refastelado na polpa de sangue e morangos, olhando com uma expressão de intenso prazer para o corpo do cadáver dependurado por cima de si.
Uma hora depois, enterrado o cadáver no quintal e limpa a cave, Augusto já a cheirar a shampoo de rosas, preparou um chá quentinho com biscoitos, afundou-se no sofá e ligou a televisão, onde começava um episódio do CSI Las Vegas.

Sem comentários: