13/07/07

A Mais Cruel De Todas As Guerras, por Jumpseat

Era 1980. E era a guerra civil moçambicana pós-descolonização.

Obrigado pelo regime, meu pai combatera na Guerra Colonial, na Guiné. Para um pacifista, anarquista, ecologista, lírico, sonhador... isso, tinha sido o principio da morte.

Lá ao fundo, na cozinha:

 Estás doido?! Temos dois filhos!! E tu queres ir para um país em guerra??
 Reconstruir um país em guerra. Reconstruir! É o minimo a fazer por quem guerra não tinha, e nós levámo-la.
 ... tem calma... sei o que sofres na guerra da tua memória... Mas temos dois filhos, amor! Dois filhos!! Uma de cinco e outro com três!!
 Eles adaptam-se... as crianças são mais fortes que nós.

E fomos.

 Papá, porque levamos tudo embora?
 Porque vamos para outro país, filha. Vamos ajudar meninas como tu, a terem água para beber, água para tomar banho, para fazer uma comida boa.
 Sim, papá.
E porque dizes que é um bocadinho perigoso?
 ... Óh, filha... como hei-de dizer... É mais ou menos assim: nesse país as pessoas estão zangadas umas com as outras. Nós não temos culpa, mas temos de ter cuidado.
 É isso que se chama guerra, papá?
 .... (o silêncio)
um abraço.


Era Janeiro e o calor afogava qualquer lembrança de um Portugal deixado há horas.
Ao fundo um aceno, e mais perto uns olhos, um sorriso, um corpo pouco mais alto que o meu... pouco mais escuro que o meu.
 Olá! Sou Moisés!
 Olá...

Meu pai cumprimentava gente que nos esperava, minha mãe tentava acalmar o choro do mano pequenino.
Eu, conhecia o mais eterno de todos os amigos.

 Pronto, já está tudo arranjado – dizia o papá – está tudo pronto para irmos. Podemos ir de estrada. A esta hora ainda é seguro.
Sorriu para mim e disse – Já tens um amigo, filhota?

 Sou Moisés. Vivo perto lá da tua casa.

Jámi, um Núbio alto, de longas tranças e voz rouca, afagou-lhe o rosto e disse – é meu filho... Deus trouxe-o para o meu caminho. A mãe foi desonrada durante a guerra... da vergonha, sobrou a dor de não o matar. Deixou-o à porta da Mesquita...Agora é meu filho.



Era 1997. E era a guerra civil da Jugoslávia.

 Não, Dra. Lamento, mas não foi aceite em Teerão – dizia a Secretária, verdadeiramente triste.
 Deixe... já esperava... compreendo e aceito – resignadamente, já sabendo que Teerão aceitaria mais rapidamente um homem, mais valia saber, para onde seria o meu próximo projecto. - Para onde então, Isabel?
 ... o director diz que precisa de alguém com os seus conhecimentos, aqui. Na Europa... - dizia com alguma cautela e olhos em baixo.
 Na Europa? Como?! Se eu sou de Estudos Asiáticos!?! - estava perplexa! Passara uma vida a estudar a Ásia e Médio Oriente! Não fazia sentido ficar na Europa!
 A Dra. desculpe... mas vai para a Roménia. É um projecto curto... são só dois anos...

E fui.

Era Março e a brisa morna que se sentia em Bucareste adivinhava uma Primavera papoila.
Ao fundo um aceno, mais perto um sorriso, um abraço, um corpo do tamanho do meu, uns olhos ainda mais claros.

 Olá! Sou Margita! - num inglês doloroso
 Olá...

De Bucareste a Botosani, são cerca de 5 horas de comboio.

Na Roménia, fala-se Romeno ou Russo.
Na minha boca, nenhuma das duas.

Margita tenta falar... eu tento entender. Temos 5 horas, um caderno, uma caneta e uma plateia de carruagem para essa tarefa .

Vamos trabalhar juntas num projecto que uma Organização tem, para o ensino de uma segunda língua (inglês) aos órfãos da guerra da Jugoslávia. Para quem sabe, um dia, eles possam ser adoptados por casais da Europa Ocidental.. dos EUA... ou da Austrália...

Botosani é maravilhosa!
Pequena, colorida, campos largos.
O Orfanato fica a 5 Kilometros da vila. Tem cerca de 100 crianças, quase todas oriundas da Jugoslávia.

 Olá, sou a Coordenadora do Projecto. Muito prazer! - digo olhando para a directora, que olha ávida para a tradutora.
 Olá! - Traduz a pequena russa que também fala inglês – Eu sou Valentina. “Mãe” destes pequenos amores perdidos.
 Porque perdidos!? - aquilo de choque, fazia-me um bocadinho de confusão. Não é propriamente a maneira ideal de falar de órfãos.

Ela olhou em redor, procurando apoio dos olhos das outras tantas presentes... e ganhou coragem:

 A Dra. não sabe?! Estes, são meninos filhos da guerra... meninos feitos do ódio...
 Desculpe... eu não estou mesmo a entender... - e não estava, de verdade...

À medida que Valentina limpava a lágrima teimosa, a pequena russa levava-me para o outro canto da sala:
 Estas crianças são filhas de violações de mulheres durante a guerra. Mulheres Muçulmanas. Por isso é que você cá está. Porque sabe dessas coisas...


Era 2001. E era a guerra Civil dentro de mim.

 Tu não podes estar bem... - dizia uma mãe perdida nos sonhos que sonhou para uma filha. Eu.
 Vou mesmo para os aviões, mamã... estou farta destes projectos estéreis, cansada da guerra... Vou viajar, conhecer a Terra...

E fui.

Era Dezembro, e a grande América lambia ainda as suas feridas de desonra... de tragédia.

 Olhe, você vai fazer os voos da Argélia. Sabe que com isto do onze de Setembro, eles não podem voar para a Europa. Nós podemos, e isto é um negócio como outro qualquer! Como você fala árabe, fica lá a fazer base. - Dizia o Comandante Director das Operações de voo.
 Sim, Comandante. Claro! - Eu. Entusiasmada!
 São dois meses... Temos de trazer os franceses que lá andam, para passar o Natal e depois leva-los de volta. Esses arrogantes... - esta última, já entre dentes.

Estava frio e o aeroporto de Argel não se assemelha a nada já visto. Soube bem o lenço que levava a cobrir a cabeça.
Ao longe, um aceno, mais perto, um cheiro, uma vénia, um “salam...”. Um corpo muito maior que o meu, um rosto mais velho... uns olhos doridos, uma cor diferente na pele.

 A'Salam waleikum... (que a paz esteja contigo)
 Waleikun 'Salam... (que ela te acompanhe também)

Num inglês magrebino, indica que é o meu transfer para o hotel. Vai levar-me ao sítio que será a minha casa nos próximos dois meses... Será o meu companheiro, meu segurança, meu amigo...

A estranheza do Inglês:
 Hassan, porque falas em Inglês e não em Francês?
 Porque sou berbere. Falo árabe e berbere. Quando não... falo a língua Universal: Inglês. - e num árabe cerrado, baixinho... odioso – Franceses... esses filhos da puta!
 Concordo contigo... - num árabe impecável – também não gosto deles!
 Olha-me no retrovisor... espantado, mas permitindo à desconfiança que se sobreponha – Falas árabe?
 Sim! – eu toda contente
 Grande merda... se pensas que vale alguma coisa – desafiando
 Vale o que vale. Vale que te entendo e podemos falar na língua sagrada. - a língua do profeta sossega-o... faz-me pertença de algo tão maravilhoso como o Magreb.
 És mulher, falas árabe, tens chador... família imigrada?
 Não! - sorriso – Portuguesa de gema! Mãe de Coimbra, pai de Alfama. Zonas de Portugal... E tu? Muito claro para Argelino e muito escuro para Tunisino? Marrocos?
 Eu...? Órfão da raiva. Filho da lei francesa.


Para quem não sabe, em 1942, França, emitiu um comunicado acerca da sua colónia mais problemática: Argélia.
Aos seus militares dizia-se “podem violar as mulheres, desde que sejam discretos...”
Hassan, é um filho dessa lei...

Milhares de crianças nascem dessa “lei” todos os dias pelo mundo fora... à semelhança do “veneno laranja”, ninguém procura, ninguém se rala, ninguém quer saber... não se fala... não se ouve falar...
Seja o que for, é lá, onde a guerra se deu – não aqui debaixo dos nossos olhos...

No inicio do século XXI, havia 5 mais vezes conflitos, do que há cem anos atrás. Conflitos mais brutais, mais bárbaros, mais violentos... odiosos... destrutivos...

Hoje lembrei-me disto... destas crianças geradas no ódio, que um dia se hão-de tornar adultos no deserto da angústia.
Esta; é a mais cruel de todas as guerras – a que continua depois da paz chegar.

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