24/03/08

Cinema e Política - II, por Mangas

Robert Rossen escreveu argumentos, foi produtor, chegou a estar na lista negra do Comité de Investigação de Actividades Anti-Americanas em pleno McCarthismo, primeiro negou, depois bufou para salvar a pele. Fiquemo-nos por aqui. Como ponto alto da sua carreira de realizador, adaptou ao cinema o livro de Robert Penn Warren, All The King`s Men (Prémio Pulitzer, 1946). O romance é inspirado na vida e obra de Huey P. Long que foi comparado por Roosevelt a Hitler e Mussolini. Em privado, Roosevelt terá até confidenciado que a par do General MacArthur, considerava Long um dos dois homens mais perigosos da América. Foi Governador do Louisiana entre 1928-1932 e Senador entre 1932-35 e deixou um legado para a História no Estado que o viu nascer para política. Morreu assassinado com chumbo à queima-roupa em 1935 por um dos muito inimigos que criou durante esse trajecto.

O Poder da Corrupção (Oscar Melhor Filme, 1949), é um filme inteligente, com diálogos perspicazes e raros momentos acusatórios que descerram o pano sob as mil máscaras da mentira, da revelação, da esperança, da traição, da queda, e da subjugação. Ali se contam duas histórias centrais, dois protagonistas cujos destinos dependem intrinsecamente um do outro – a ascensão e queda de Willie Starks (interpretação genial que valeu também a estatueta a Broderick Crawford), e a jornada de Jack Burden, o jornalista, pelas vicissitudes da ilusão e do engano em busca de si mesmo, do seu lugar neste mundo.

Nesta altura importa trazer à lembrança Mr. Smith Goes to Washigton e dele recuperar Jim Taylor, o homem-sombra que mexe as cordas nos bastidores da política e que efectivamente é quem detém o poder, ordenando segundo as suas conveniências a decisão política dos Senadores eleitos pelo povo. Em O Poder da Corrupção, é Tiny Duffy quem dirige a orquestra, nomeia os cargos, impõe pela força ou pelo dinheiro as local politics. Todavia, e contrariamente a Mr. Smith Goes to Washington, no filme de Rossen a desintegração deste processo nunca é posta em risco, pelo contrário, cristaliza-se na prepotência ditatorial de Willie Starks quando é eleito Governador do Estado – apercebendo-se que vai ser um candidato fantoche, carne para canhão na dispersão de votos, decide atacar, trocar as voltas ao discurso e falar à consciência dos homens lembrando-lhes a penúria nos bolsos. Uma vez eleito, e fazendo recurso à chantagem e golpadas selectivas, Starks nunca olhou a meios para atingir os fins e nunca se escondeu de negociar com o Diabo. Do Mal vem o Bem, justificará. Mas dele nunca se poderá dizer que foi um homem incapaz de cumprir promessas. Sangrou as bolsas dos ricos, construiu estradas, libertou os custos de produção dos agricultores, edificou pontes e hospitais, varreu o Estado com medidas de desenvolvimento e reformou o sistema pela centralização do poder na sua pessoa, pelo branqueamento de capitais, pela compra de amigos e adversários que, sem escrúpulos e hesitações, transformou em inimigos. Fascinante percurso o deste campónio iletrado que se agarrou ao curso de Direito por correspondência e alcançou o diploma de chico-esperto Governador Todo-Poderoso.

O lugar de Jack Burden na trama do filme é de uma relevância central, quer como narrador e catalisador da trajectória fulgurante de Starks, quer na relação que estabelece entre dois mundos, duas classes sociais diametralmente opostas: as sua origens na nobre tradição do smoking ao jantar em Burden`s Landing onde vivia uma sonata imperfeita, e as ruas empoeiradas de Kanoma City esquecida nas entranhas do Sul profundo. O cordão umbilical e a crueza da privação. A ilha isolada e os pecados dos homens. Como ponte estes dois universos, Burden modifica-os e abala as suas estruturas de forma inequívoca, muitas vezes ultrapassado pelo evoluir das circunstâncias. Essa revisitação do passado/presente em Burdens Landing, essa fuga para um mundo ao qual pertencia por afinidade, mas com o qual já não se identificava, terá os dias contados. A seu tempo chegará a destruição dessa Camelot com o suicídio do Juiz e, com ele, Burden terá a percepção clara que o retorno é irreversível. Brutal. Drama em estado puro. Filmado a várias vozes e à dimensão trágica de preço alto que ambos tiveram de pagar. Nada voltará a ser como dantes. Para o bem e para o mal, Starks será o cordeiro sacrificial que irá consumar a revolta dos oprimidos e instituir o absolutismo, Jack Burden foi o instrumento que lhe deu voz e que no final, perdeu Ann a amada que também não resistiu ao magnetismo de Starks com o qual se enrolou em políticas de alcova.

À semelhança de outros lideres, a suspeição do quanto este poderia trilhar terrenos pantanosos foi-nos logo sugerida no plano de abertura do filme que mostra o meio corpo de um personagem de costas, a discursar sem voz num palanque para a multidão. Três pormenores se retiram deste momento fascista e que provam como uma imagem em cinema estruturado consegue alcançar a mais eloquente expressão dos sentidos e do drama que se anuncia: os gestos, o transe e o fogo que arde em cada palavra, em cada expressão atirada à chusma incendiada: Starks conhecia-lhes de cor a linguagem pois era um deles. E tal como com Lincoln, também a morte acompanha o seu trajecto – sortilégio retorcido pois desta vez é a morte de crianças pelo desmoronar da Escola que lhe dará o impulso e a notoriedade que precisava. Repare-se nos seus olhos surpresos e agraciados no momento do funeral quando é felicitado pelo esforço que fez em embargar a construção da Escola o que teria evitado a tragédia - não há ali luto nem pesar, há ali oportunidade vislumbrada! E é esta subtileza encoberta que nos remete para o homem: Willie Starks era genuinamente um homem que não prestava. O próprio pai lho dirá a certa altura. Pela colagem do personagem ao verdadeiro Huey P. Long no qual é baseado, poder-se-ia estabelecer uma discussão dos princípios morais e questionar Rousseau sobre o estado de natureza e a corrupção através da sociedade. Em O Poder da Corrupção a duvida subsistirá sempre: tirano para uns, Messias para outros, salvador ou carrasco, déspota ou homem do povo, Willie Starks foi um homem que reinou, que podia ter chegado a Presidente e acabou assassinado às mãos da vingança e do ódio que sempre fabricou. They say he is a honest man. O ciclo completa-se. A fábula, porém, mantém-se contemporânea.

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