26/07/08

Paradise - (1966-2004), por Mangas

Paradise está bêbado e conduz o velho Opel a toda a mecha por uma estrada não policiada. Na mão esquerda segura um cigarro, a direita alterna o volante com as mudanças, e com ambas faz um longo discurso sobre o mar que ele vê como a pátria. No banco de trás, latas de cerveja vazias e um saco plástico com mais algumas quantas. Olho pelo retrovisor e digo-lhe para abrandar, mas ele inverte os tempos dos verbos e o sujeito, regressa ao passado e fala-me da pátria que ele vê como o mar. O meu joelho esquerdo está inchado. Sinto-o latejar como se fosse o terceiro ocupante. As batidas do meu coração a bombear sangue do qual ele se vai alimentando para manter o calor e a inflamação que o sustenta. É quase como se o meu próprio joelho fosse revestido por um segundo músculo cardíaco, autónomo e independente do restante funcionamento do meu corpo, das células que o organizam, das funções vitais como dormir ou transpirar. O carro voa literalmente no alcatrão. Paradise orienta o volante como se lesse um jornal, está-se nas tintas para os sinais de limite de velocidade, atira o filtro do cigarro pelo vidro, aponta para mim, grita,

MEU RAPAZ!!,

e inicia um longo monólogo sobre a fenda na continuidade das nossas vidas e a sua relação com o jazz. Se é possível antever o ciclo a fechar-se e como se fecha, ou se ele fecha realmente. Acaba sempre por dar resposta às suas perguntas e continua por ali fora. Observo-o de perfil, rosto hirto, a nadar no som de um contrabaixo que ecoa à nossa passagem na estrada deserta, a testa contraída, os esgares extáticos de dor pungente quando cerra os dentes e os olhos e acompanha um riff prolongado do Charlie Parker. Abro mais uma lata para mim e outra para ele. Embala-me o som em surdina do motor. Um confortável alheamento à paisagem em sentido único que mergulha no alcatrão negro como breu. A ideia tinha sido sua e eu sabia de cor o enredo daquela fuga e como assassinar o tédio e o silêncio que nos separara até esta noite, enterrá-lo bem longe, deixá-lo por lá, debaixo de uma duna que não pertencesse a nenhum homem e que o mantivesse prisioneiro. Paradise aumenta o volume. Marca o ritmo com os dedos descrevendo pequenos círculos no vazio. Diz,

o que marchava agora era uns bolos de amoras com um copo de vinho de bagas de sabugueiro, se nunca bebeste vinho de bagas de sabugueiro rapaz, não sabes o que perdes acredita, os tipos fazem aquilo no sul de Inglaterra e na Nova Caledónia logo nos primeiros dias de Outono quando os plátanos se transfiguram e as folhas ficam muito amarelas, depois manchadas de vermelho, cor de terra e vinho novo, tens de ver, tens de lá ir, tens de ver os plátanos, são criaturas instáveis como as mulheres, chega o Outono e finalmente as coisas parecem ser mas não são, na realidade parecem mas não, percebes, conheci uma gaja assim, conheceu um gajo, abriu-lhe as portas das pernas, convidou-o a entrar e depois obrigou-o a rastejar que te parece?, pergunta a concluir. Interrompe a minha resposta com uma gargalhada e cita Marco Aurélio em inglês, num tom de epílogo: It`s a dream... A frightful dream life is!

Paradise partiu da Austrália atrás dos dólares e da aventura. Conhecemo-nos numa tarde de Inverno no Michigan, ele a falar-me das praias em Brisbane, eu a mostrar-lhe as páginas centrais da Bola, depois de me ter confessado ser adepto do Benfica desde miúdo. Ganhou a minha confiança quando me mostrou a sua colecção infindável de jazz. Possuía peças únicas dos primeiros tempos da Blue Note, colectâneas de Jelly Roll Morton, as primeiras edições de Art Tatum. Paradise tem também entradas marcadas dos dois lados da testa e penteia desalinhadamente o cabelo para trás. Um dia virou-se para mim em tom de caso sério e disse-me,

só há pouco tempo descobri que a entrada do meu cabelo no lado direito está mais acentuada por causa da posição fetal para esse lado em que me habituei a dormir, como a testa fica pressionada no colchão a circulação sanguínea nessa zona é menor e o metabolismo capilar diminui, sabes fiz esta descoberta sem quê nem porquê enquanto falava com uma tipa loira parecida com a Kim Novack no Vertigo que os pais baptizaram com o nome do ciclone Harriet, mas que eu tratava só por Harry, e até hoje tento descobrir a relação entre uma coisa e outra.

Estamos perto da praia. Paradise avisa-me que vai meter uma terceira a fundo, contornar o areal e as dunas e entrar pelas ondas, nós os dois dentro do carro, o meu joelho esquerdo incluído. Solta uma gargalhada demoníaca, os olhos raiados de sangue, lábios secos, gotas de suor na testa que ele ignora rolam-lhe pelo rosto e desaparecem na linha do pescoço que mergulha na camisa suada. Faz uma derrapagem com o travão a fundo, os pneus resvalam até onde o alcatrão termina, sai para fora, saio também, cheira a borracha queimada e sopro marítimo, caminhamos alguns metros nas dunas e sentamo-nos de frente para o oceano prateado. Acende um cigarro.

Um dia tenho de te levar a Sandy Cape, perto de Brisbane, tens de ir comigo e as pranchas, nunca viste ondas daquele tamanho e vais ver que não queres que aquilo acabe nunca, fuck!, vai ser como quando o Benfica espetou seis ao Sporting, estávamos nós em Detroit lembras-te, pá? mas lembras-te mesmo?

Depois, acrescentou que Normam Mailer é que tinha razão, com aqueles olhinhos a piscar de velha raposa quando falava sobre a América, que a América já não era uma esposa tão nobre como nos bons velhos tempos porque existia algo de errado na sua estrutura básica, algo decomposto e sanguinolento que lhe incha as entranhas, que tudo nela era tumular como um pesado medo. E que um tipo corre o risco de se deixar contagiar se nela passar muito tempo, e que eu tinha feito bem em ter vindo embora, que ele próprio, desde que lá chegara, já tinha sentido o coração mais leve. Um silêncio intangível vacilou na escuridão. Ao fundo, os dedos fantasmas de Oscar Peterson caceteavam um piano frenético e eu regressei ao meu joelho aceso.

Durante o Verão de 93, chegava a vir descalço da casa dele à minha em atalho pelos relvados dos vizinhos, com uma caixa de cervejas Foster para se deitar no chão da sala e ficarmos ali, a conversar horas a fio sobre a geração beat e a ouvir a sua colecção, Monk, Charles Mingus, Weather Report. O demónio solta outra gargalhada que ecoa nas dunas para disfarçar a melancolia no olhar. Paradise ocasionalmente usava um chapéu Akubra autêntico. Era um dos objectos que aos seus olhos o distinguiam como indígena australiano dos yankees que odiava visceralmente. O outro era um enorme saco de lona verde, AUSTRALIAN ARMY em letras impressas e desbotadas e para o qual enfiava sem qualquer ordem pré-estabelecida, roupa, livros, sapatos, cervejas, fotos, recortes, discos e outros fragmentos dispersos de uma vida passada e futura na estrada. No dia em que me vim embora de vez do Michigan, acordou cedo, apareceu em lá em casa e levou-me ao aeroporto. Almoçámos juntos e sentámo-nos à espera. Nunca se separou de um saco plástico que trazia na mão. Falou muito pouco, ao contrário do que lhe era habitual. Quando chegou a hora do embarque, abriu o saco, tirou o Akubra e enfiou-mo na cabeça.

Abrimos a última lata e ficámos pela madrugada a recuperar canções perdidas para sempre. O que exprime é autêntico e sem reservas, como o jazz que ouvimos nas dunas proveniente do velho Opel com os faróis apontados à espuma da noite. Há ali um poder liberto e arbitrário de sons, sensações e entendimentos. Digo-lhe que é um tipo que se move entre existências e buscas, chamo-lhe compositor de tretas e ele ri-se na minha cara. Mostra-me os dentes de marfim muito branco, o rosto engelhado como se fosse o cenário de fundo daquele olhar tubarão encalhado em terra, com fome, mas incapaz de morder. Respondeu-me que o Miles Davis era um arqueólogo de sons com um volume residual inspiratório muito acima da média. Atira-me, É um sonho. A vida é um sonho assustador. Acreditas...? Eu acreditava.
Foto: Amphibious Landing Craft & Tea Kettle, de f/1.4

2 comentários:

Anónimo disse...

já vi que ninguém leu isto, o que é pena. esta porra está muita bem escrita e é mangas no seu melhor. e engraçado que o mangas aqui até conseguiu deixar de fazer aqueles ruídos incómodos como os vuluptuosos os sabres.

aqui é nostalgia pura de um paradise mitico. nós também temos um paradise mitico deste calibre ou bem melhor e cá e não na américa. infelizmente é um bicho ainda mais razo que o lince da malcata e pouco ou nada se deixa ver. chama-se cão e por vezes anda aqui a morder vírgulas a mais e cachopinhas imberbes que têm a ousadia de meter a cabecita de fora.

ass; falâncio,

Anónimo disse...

raro e não razo

faluncio,